segunda-feira, 22 de agosto de 2011

"Indignai-vos"

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Hoje acordei com uma vontade indizível de gritar um palavrão... um imenso, do tamanho da minha idignação! Um palavrão onde caiba todo ódio do mundo, daqueles que a gente murmura quando algo dá errado... quando o chão pula no dedinho pé ou a gaveta nos engole a mão... Um baita palavrão,  o mais pesado, o mais cretino da 'última flor do Lácio' essa flor inculta e bela!    Queria um impropério que expressasse de forma definitiva a minha revolta... só pode ser um palavrão, um daqueles que a gente manda pro técnico do futebol ou pra telefonista que nos obriga a ouvir Pour Elise repetidas vezes... aliás Beethoven devia estar muito entediado... Preciso urgentemente de um palavrão e não tem um nos Classificados ou nas páginas amarelas... francamente! Um palavrão charmoso, inusitado, um que me alivie esse cansaço... Ando mesmo cansada, realmente cansada... da política mesquinha nos gabinetes luxuosamente mobiliados, cansada do Fantástico misturando assassinatos, corrupção e amenidades burguesas... exausta da hipocrisia da cultura pop e da falta de politização das lutas sociais... Da Veja, do PIG, do Jô e da novela, dos comentarios vazios do Arnaldo Jabour, e até do Caetano (devia limitar-se ao que faz bem: cantar)... mas esta é outra história. Eu preciso de um palavrão, um protesto épico, legendário. Quando pensei que tudo já estava triste de fazer dó, me aparecem palestrantes entojados, cujos Lattes impecáveis e, diga-se, invejáveis, não os impedem de zombar da plateia... escuta só: em plena sexta-feira, sala cheia de pessoas ávidas por conhecimento (ou por assinar a chamada e cair fora), todos pós-graduandos, mestres e doutores experimentados nas agruras da academia, a palestrante, depois de divagar interminavelmente, se levanta e escreve no quadro:  FOUCAULT!!! Aí eu amaldiçoei meu dia de vez... senti que deveria rasgar meu currículo e assassinar meu trabalho! Meus colegas e eu nos vingamos como se deve, "civilizadamente", academicamente. Fiquei estranhamente aborrecida, pouco me adiantava usar a ironia civilizada, queria mesmo era uma discussão escandalosa, que me desse alguma sensação de alívio... algum sinal de honestidade. Não bastasse minha raiva por ter que participar dessas cerimônias sociais em que é obrigatório a reverência, a condescendência, a boa vontade... tive que distribuir "boas noites"... ah crueldade sem fim! E assim, estrangulada pela boa educação, coloquei à contragosto a máscara blasè e ligeiramente risonha, voltei pra casa sem o meu palavrão. Coloquei os fones de ouvido, tentei sem sucesso aquelas técnicas de meditação... Além de tudo, meus rins doem...tenho pedras. Ah como eu queria um palavrão!

O grito - Edvard Munch


PS: Aos indignados recomendo a leitura do livro "Indignai-vos", do grande herói da Resistência francesa Stèphane Hessel... desejando que a indignação ultrapasse esse meu amuo, essa malcriação... que nós a reclamemos como um direito, que a usemos para abandonar a indiferença...

domingo, 26 de junho de 2011

Para um amigo, este prólogo reticente

   Intenções ocultas não são minhas melhores amigas, nem me agradam os simulacros. Pois bem, eis que segue uma confissão perigosa, mas necessária: tenho uma relação ambígua com certas leituras do feminismo. Percebo isso quando sou indagada a respeito por algum(a) militante apaixonado(a) pela causa ou por alguém interessado em me desconcertar ainda mais... como todo ser humano, eu sei o céu e o inferno de ser provocada até à impaciência. Um pouco Culturalista, para usar um "apelido" não muito carinhoso que ganhei de um amigo, mas redimida sempre em águas marxistas, acredito que a distinção social é a mais importante na análise dos fenômenos e processos históricos, apesar de já ter admitido, à duras penas, que ela não é a única que conta. Meu bom amigo considera imperdoável esta minha concessão. Justifico-me: não raro caio na armadilha das alternativas, como ele faz frequentemente, mas imediatamente me recupero tomando doses e doses dos escritos de Edward Palmer Thompson.
   Voltando, resisti bravamente durante largo tempo à história de gênero por entender que ela se erigia sobre o equívoco de um feminino atemporal. Protestava firmemente que as expectativas contemporâneas não podiam ser simplesmente estendidas à todas as categorias sociais das mulheres e muito menos se referiam indefinidamente às do passado. A experiência da exclusão social, as diferenças marcadas pelas culturas locais, as questões específicas colocadas por cada época e uma infinidade de outras variáveis me atormentavam. Não podia aceitar revoltas de mulheres operárias no século XIX como manifestações feministas, seu ódio era contra a exploração do trabalho, no meu entender. Como não queria ser leviana em assunto tão sério, li alguma coisa, aceitei alguns preceitos... da recusa passei à reticência honesta... já não me atinha ao senso comum que acusava o movimento feminista de arrivismo.
   É claro que o feminismo, de orientação política, tem sua própria história. Mediante genuínas revoluções na linguagem política, os movimentos feministas foram sem dúvida os responsáveis pela emergência da categoria de gênero. A história, escrita a partir do presente e observadora implacável das querelas, não poderia ter deixado de se pronunciar: deleitou-se em usar uma categoria que atendia ao desejo historiográfico em voga.Ser historiador de gênero nos idos da década de 1970, apesar das ressalvas, era colocar-se na linha de frente do combate político, era assumir o controle dos discursos históricos sobre o feminino descobrindo verdadeiras brechas na história contada por e sobre homens. Era factível e nobre naquele momento contar a história dos vencidos, embora não escapasse aos reticentes a esse "novo campo" representado pela história de gênero que os vencidos nem sempre eram mulheres e que o gênero só teria razão para se firmar como conceito, se levasse em consideração seu aspecto relacional. 
   Grosso modo, fui acusada de relativismo, quando na verdade minha intenção era demonstrar que a luta do feminismo é legítima (não dá pra negar o valor inestimável de conquistas como o direito ao voto, a ocupação do espaço público, a liberação sexual e a assertiva de que o pessoal é político), mas não queria com isso colocar sob suspeita uma massa indefinida de mulheres que não reagiram de modo abertamente revolucionário. A ação dessas mulheres não corresponde à alienação, à aceitação ou ao niilismo: é uma questão que passa por condicionantes sociais e culturais, sem dúvida. Por outro lado, a opressão nem sempre é masculina, o que não significa que eu negue a existência dessa atitude execrável de dominação exercida por muitos filhos de Adão.
   O que parece me incomodar no feminismo é semelhante ao que me incomoda em vanguardas de variada estirpe (me arrisco a incluir até a dita "democrático-liberal"): o fato de se arrogarem guardiãs do fogo sagrado, porta-vozes das  expectativas alheias. As vanguardas, pautadas em uma superioridade presumida, julgam estarem acima de qualquer suspeita, quando o que costumam fazer é deslegitimar tudo o que não está em seu programa libertário. Inúmeras mulheres não se conformaram com as injustiças de seu tempo, fossem de origem social,racial, política ou machista, mas manifestaram sua indignação de modos infinitamente diferentes. Minha leitura é condescendente eu sei, ainda não pude evitar, mas essa visão não me impede de ficar fascinada por figuras como Adela Velarde Pérez, Sóror Joana Angelica, Nísia Floresta, Dilma Rousseff e tantas outras.
   Só consegui aliviar minha angústia quando, vencida pelo cansaço, decidi usar o delicioso chavão com que os historiadores adoram fechar uma polêmica: o feminino, assim como o masculino, são construções sociais... podemos apenas captar suas variações no tempo e no espaço. É claro que isso aquietou minha consciência científica mas não resolveu o principal: o que fazer com essa constatação. As representações do feminino existem e são constantemente apropriadas para fins políticos, azar mesmo é dos machistas que foram desmascarados, não deixei de me sentir confortável com isso e que se danem os escrúpulos historiográficos. Apenas não posso concordar com a limitação imposta aos papeis sociais, políticos e culturais das mulheres, condenando-as a procurarem em um repertório definido de ações aquelas que mais corroborem nossas expectativas revolucionárias; não estou disposta a trair a alteridade do passado. Eu preciso acreditar que somos todos e todas infinitas possibilidades... nossas ações devem ser legitimadas por valores mais autônomos. Posso até me tornar praticante da história de gênero aos sessenta, como meu caro amigo profetizou, mas por enquanto me dou o benefício da dúvida, me deixo ficar assim... reticente.

Mulheres correndo na praia, Picasso
(PS: Para não deixar soltos alguns fios desse emaranhado confessional, prometo postar em breve... nem tão breve...um texto mais apresentável a respeito da história de gênero)
(PS': Como prometido no primeiro parágrafo, não vou ocultar a intenção deste pequeno texto: orientar a leitura deste meu poemeto. Insiro uma letra de música para explicar o nome da minha personagem: Adélia e Adelita são aparentadas, ambas experimentaram as agruras da vida. Espero que a crítica social implícita não passe despercebida.)
(PS'': Artur, "você não vale nada mas eu gosto de você" (rsrsrs) Estou preparada para horas intermináveis de sermão marxista.Para seu deleite um dia ainda vou pesquisar sobre Maria Firmina dos Reis e Nísia Floresta... de certa forma eram indianistas também.)






Angelus
     
  F.C.S.
Para Adélia, uma prece que seja sua
e uma vontade de ferro,
que os homens já queimaram os pastos
e já não têm amor para oferecer.


Para Adélia, as contas infinitas de um rosário,
desfiadas com pranto,
aos pés de Sant'Ana misericordiosa,
por si e pelos peregrinos cansados.


Para Adélia, o sangue do Cordeiro derramado
Angelus, Jean-François Millet
por sobre pedra rústica,
que aqui nos trópicos
são menores os pecados.


Para ela, que é espinho sertanejo, o perdão
em gamela de madeira da terra
e que brotem viçosos os frutos
semeados em solo tão árido.

Para Adélia, um homem que seja seu,
que ofereça abrigo humilde 
e repasto para um peito tão faminto.
Para ela uma brisa a cada dia.

Adélia aceita o apoucado, acostuma-se.
Dessa vida escassa menos que nada se leva,
exceto a lembrança de ter vivido
sob sol tão abrasado.






Coplas a la Adelita
Chabuca Granda
Donde estas Adelita
donde estas guerrillera
donde estas Adelita
donde estas guerrillera 

Adelitas, Domínio Público
Todas las sangres soy
desde tu sangre
todos los sueños soy

desde tus sueños 


Donde estas Adelita
donde estas guerrillera
todo diste de ti
el brazo armado
si no fuera por ti

no habría sido 


Donde estas Adelita
donde estas guerrillera
o cargando un fusil
o cocinando
o lavando camisas

o pariendo 


Donde estas Adelita
donde estas guerrillera
paseando los pies
por los caminos
vas gritando tus muertos

y cansancios 


Donde estas Adelita
donde estas guerrillera
fuiste revolución
fuiste victoria
toda la tierra fuiste

guerrillera

domingo, 12 de junho de 2011

Das Mortes de Jobim, Tolstói e Pessoa

F.C.S.
Na minha aldeia passa um rio. 
Um rio corta minha aldeia. 
Sonda a minha aldeia um rio. 
Seu curso leva o tempo 
E deixa vazia a minha aldeia.


Abandonadas canoas à beira,
Abandonados homens e mulheres da minha aldeia.
Despovoada e à espreita
Lasar Segall , Aldeia Russa
Resiste a minha aldeia,
à espera da próxima travessia.


E eu sou o que fica, 
Fica sempre,
Até a morte fica.


Na minha aldeia passa um rio,
Abandonadas canoas à beira.
E eu sou o que fica.


Um rio corta a minha aldeia.
Abandonados, homens e mulheres da minha aldeia
Ficam sempre.


Sonda a minha aldeia um rio.
Despovoada e à espreita
Até a morte fica.                                  


O curso do rio
é o curso do tempo
que deixa vazia
a minha aldeia.